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terça-feira, novembro 04, 2003

ÍCONES FEMININOS: O ETERNO RETORNO ATRAVÉS DOS TEMPOS E NAS ATUAIS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS



Elizabeth Firmino Pereira, Flávio Mário de Alcântara Calazans. – Educação Artística – Departamento de Artes Plásticas – Instituto de Artes da UNESP– Campus de São Paulo.
*Trabalho realizado com bolsa de IC concedida pela FAPESP, no período de Nov./2001 a Mai./2002.

Contact: beth_firmino@yahoo.com.br


RESUMO:

O presente trabalho visa analisar a imagem da mulher através dos tempos, transmitida por ícones divididos em três categorias: os ‘Sagrados’, na figura da Virgem Maria e de deusas da pré-história e da Antigüidade (inclui-se aí também as divindades femininas do candomblé brasileiro) ; os ‘Profanos’, seja na forma do que pertence ao cotidiano e não ocupa nenhum lugar especial ou aquilo que deixou de ser sagrado, em razão de mudanças históricas, culturais e religiosas; e, através das ‘Histórias em Quadrinhos(HQs)’, fundamentalmente representadas por ícones.
Trata-se de uma investigação científica que tem por objetivo retratar a mulher na sociedade através de mitos e ícones que esta mesma sociedade cria e recria, de acordo com os conceitos de “Eterno Retorno” de Nietzsche e Mircea Eliade; analisando, subliminarmente, de acordo com Calazans, as imagens representadas por esses ícones.
A partir da análise do culto à Virgem Maria, em analogia aos cultos de deusas “pagãs”, também representadas por ícones (ou imagens), chega-se a vários denominadores comuns de símbolos, ícones e padrões femininos recorrentes, ainda hoje, como modelos comportamentais registrados iconicamente nos quadrinhos.Tais ícones transitam entre o ‘sagrado’ e o ‘profano’, tendo as necessidades sociais e culturais como reguladores, cumprindo também uma função “educativa”.

PALAVRAS-CHAVE:
ÍCONE, MULHER, HISTÓRIA EM QUADRINHOS, SAGRADO, PROFANO, ARTE, SOCIEDADE.

INTRODUÇÃO:
O conceito de ícone:

No sentido original, deriva da palavra grega “eidon”, que significa ‘semelhança’, evidencia a idéia de contato, aproximação, ligação com algo maior.
Segundo Besançon (1997) o ícone é uma escrita, é uma janela. Ele se conforma ao gênero literário contando, narrativo através de suas imagens. É dessa forma que o ícone surge com tanta força na Igreja Oriental Ortodoxa e sobrevive até hoje como materialização do sagrado, especialmente nos ícones russos, de cores fortes e traços definidos. O mesmo padrão da imagem “chapada”, direta, é também empregado nos quadrinhos no sentido de comunicar imediatamente. O conceito de ícone como ‘janela’ em muito se assemelha à utilização mais corrente e conhecida do termo entre nós, na linguagem de informática.
Segundo Lúcia Santaella (1993), o ícone pertence, dentro da análise semiótica de Charles Sanders Peirce (1839 – 1914), a uma tríade básica da designação de signo, estando associado ao conceito de “Primeiridade” e representa a imagem em si e as representações subseqüentes que ela possa vir a suscitar. Como o índice está ligado à idéia de criar conexões (“Segundidade”) e o símbolo com a transfiguração do global, do genérico (“Terceiridade”), o ícone representa o particular que leva ao genérico.
Calazans (1992) nos apresenta o conceito do “iconeso” formado pela junção das palavras ‘ícone – imagem’ e ‘eso’ (do grego) – dentro, para designar e explicar o sentido de subliminar: a imagem dentro da imagem, uma justaposição de sentidos.
O sentido que pretendo dar à palavra ícone é um pouco de tudo isso, é um corte transversal combinando tais sentidos, na forma do “sagrado” e do que hoje se convenciona a designar “profano”. Para efeito de análise, tomo também figuras tridimensionais e fotografias, partindo do pressuposto do ícone como “imagem materializada”, trazendo implícita a idéia da ‘forma’. Tal liberdade se deve ao fato do ícone já ter suplantado o seu sentido original e de existir hoje entre nós associado a imagens que, por sua força de expressão, nos atraem e nos arrebatam. Imagens ou visões que transcendem a si próprias.

A mulher: as deusas pagãs, a Virgem Maria, a Inquisição:

A institucionalização do culto à Virgem Maria ocorreu a partir do Concílio de Éfeso, realizado no século V, onde ela foi oficialmente considerada Theotokos (no grego: mãe de Deus). Mas a devoção surgiu muito antes disso, espontaneamente, na arte tumular em forma de afrescos. A cidade de Éfeso, segundo Freud (1911), a última morada de Maria, foi também sede de um antigo culto matricial dedicado a Diana de Éfeso (ver iconografia).
Essa aceitação da Virgem Maria em Éfeso está diretamente relacionada a uma outra característica das devoções marianas: a incorporação do culto das deusas consideradas pagãs ao catolicismo. O mesmo ocorre em outras partes do mundo, como no caso de N.Sra. de Guadalupe, no México, vinculada às tradições indígenas ou N. Sra. de Montserrat, na Espanha, que tem seu templo construído no mesmo local de culto da antiga deusa Isthar (na montanha do mesmo nome). Tais fatos, certamente poderiam ser relacionados aos conceitos de Eterno-Retorno de Nietzsche (s/d.) e Eliade (1988) pela própria recorrência.
De certa forma, a devoção à Virgem Maria supriu uma lacuna deixada pelo patriarcado representado pelas religiões judaico-cristãs, diferentemente das religiões pagãs politeístas, com suas divindades femininas e sacerdotisas.
O período da Santa Inquisição marca a total repressão à mulher e aos cultos ancestrais, como forma de dominação religiosa e ideológica. Certamente tais marcas existem até hoje, não só na sexualidade - o principal alvo dos inquisidores -, mas também na imagem que a mulher tem de si mesma. A palavra “feminina“ provém de FEMINA que, segundo o Malleus Maleficarum - o “Guia da Inquisição” - (Kramer & Sprenger, 1997) deriva do latim FÉ MINUS (fé menor), colocando a mulher em condição de inferioridade e descrédito como ser humano.
Em 1854, é promulgado pelo Papa Pio IX o dogma da “Imaculada Conceição”, que diz respeito à “Assunção” de Nossa Senhora”. A partir desse momento, Maria ascende ao plano divino, por considerar-se que seu corpo ascendeu aos céus. Esse fato coincide com um momento histórico de grandes transformações, com o desenvolvimento da industrialização e o surgimento do capitalismo. Não por acaso, a imagem da mulher como Mãe é exaltada e ela é comparada à Virgem Maria em amor e dedicação ao filho, seu único e maior amor. No século XVIII, segundo Nunes (2000) e Muraro (1993), também era preciso conter os altos índices de mortalidade infantil. Era necessário criar o conceito de mãe, incluindo aí uma grande dose de sacrifício e, nesse sentido, a imagem da Virgem foi bastante oportuna. Era preciso alimentar a economia nascente com a mão-de-obra necessária.
Embora os tempos tenham mudado, as mulheres ainda não recompuseram totalmente a sua imagem e seus valores. Essa dificuldade de adequação deriva de um ser humano fragmentado entre as mais diversas necessidades e solicitações.
As figuras femininas japonesas do mangá, integram diversos elementos do feminino em uma mesma personagem, fator que gera complexidade.
Apesar de não existir no Brasil difusão dos quadrinhos africanos e não haver uma produção considerável de quadrinhos com enfoque afro-brasileiros, a situação da mulher afro-descendente é bastante estudada pela sociologia e pela antropologia e as observações feitas por Muraro (1993) eu também pude notar em minhas investigações de campo. No que diz respeito à organização familiar dessas mulheres, sobretudo as de baixa renda, concentram em si as responsabilidades e decisões da casa. Ocupam também posição de destaque e respeito nos candomblés brasileiros como mães-de-santo.

A mulher nos quadrinhos, da Virgem Maria a Valentina Rosselli:

A figura da mulher nos quadrinhos, sobretudos das mães é absolutamente reveladora. Primeiro porque praticamente inexistem e, as poucas mães que aparecem, são desvinculadas da realidade contemporânea: não trabalham e vivem apenas em função dos filhos, como a Super-Mãe, de Ziraldo ou a Mãe do Geraldão, de Glauco. No universo infantil de Maurício de Souza as figuras maternas são fragmentadas, às vezes aparecem apenas mãos levando comida, ou os pés, um pedaço da perna... Quando aparecem inteiras estão levando os filhos ao médico, ao dentista, etc; nenhuma dessas mães trabalha fora.
Os outros ícones poderiam ser divididos entre: as guerreiras (ou caçadoras), uma representação das antigas deusas “virgens” (não-casadas) lunares como Diana, Ártemis ou Atena; as sedutoras, herdatárias de Afrodite (Vênus) e das antigas deusas da fertilidade, todas voluptuosas e erotizadas e as avernais, personagens misteriosa, sedutoras e sinistras que concentram em si grande poder de destruição, representando o perigo do “desconhecido” ou do elemento indomável da natureza feminina, são arquétipos de Lilit, a primeira mulher de Adão, de Hécate, a face escura da lua, de Perséfone, a esposa de Hades. Exemplo dessas figuras são Vampira, Vampirela, Elektra Assassina, entre outras.
A figura da Virgem Maria, com as devoções divididas nos Três Mistérios: Mistérios Gozosos, Dolorosos e Gloriosos, poderia facilmente aproximar-se desses arquétipos do eterno feminino, recorrentes em muitas culturas que vinculam a idéia da mulher como mãe e representante da fertilidade, além de guardiã dos mistérios. Entretanto, a questão da sexualidade fica muito deslocada. No entanto, a figura da Virgem quando aparece nos quadrinhos é sempre vinculada ao sobrenatural.
Os ícones femininos nos quadrinhos representam bem a situação da mulher atual na vida e no mercado de trabalho, a maneira com é vista e estimulada a ser: sedutora e competitiva. O que não deve ser: misteriosa, excessivamente emotiva, vingativa, perigosa. Naturalmente, esses padrões são parciais e incompletos, mas refletem valores sociais que vinculam a mulher ao corpo e o homem à mente.
A personagem Valentina Rosselli, de Guido Crepax é uma exceção a essas regras, primeiro porque é leitora de Freud e de Trotsky; é fotógrafa profissional; tem namorado é mãe. No álbum “O bebê de Valentina” (Crepax, 1972-reeditado em 1991) ela aparece grávida, fato único nos quadrinhos. Porém, isso só é possível porque as suas histórias possuem cinco linhas de narrativa: sonhos, fantasias, leituras, recordações e realidade. É uma exceção que confirma a regra, mas também indica outros caminhos.

METODOLOGIA:

O trabalho, já concluído, foi realizado entre 01/06/01 e 31/05/02, com bolsa de Iniciação Científica concedida pela FAPESP. Compreendeu pesquisa de campo e teórica nas duas fases da investigação.
A pesquisa de campo foi realizada com visitas a museus de arte sacra, igrejas e terreiros de candomblé. Incluiu, além da observação, entrevistas informais com sacerdotes, sacerdotisas e fiéis da religião católica e dos cultos afro-brasileiros. Incluiu, ainda, a participação em cursos de arte sacra e de tradições religiosas afro-brasileiras.
A parte teórica compreendeu a consulta a livros, periódicos, histórias em quadrinhos e internet.

CONCLUSÃO:

A conclusão que se pode chegar é que as figuras femininas nos quadrinhos não fugiram ao padrão grego clássico de Areté - ou virtude- feminina: a beleza ou a maternidade (ser mãe de herói). Todas as personagens femininas possuem a beleza, mas a maternidade só vem com Valentina Rosselli, talvez inaugurando novas possibilidades, pois, como dizia o poeta brasileiro, Cazuza: “Só as mães são felizes...”. Provavelmente, Valentina foi mais feliz que as personagens que lhe deram origem: Lulu (do filme Lulu, a caixa de Pandora) e Louise Brooks. Feliz por poder desempenhar vários papéis sem culpa – protegida pela ficção das redes do moralismo e das exigências sociais. Se para tanto, Guido Crepax precisou criar cinco linhas de narrativa, quantas serão necessárias à mulher moderna para que se reconheça como um ser humano completo em todos os papéis que desempenha?
Todas essas questões são pertinentes, pois, o maior interesse do presente trabalho é analisar as relações existentes entre os diversos ícones, aos quais somos diariamente expostos e os padrões sociais de comportamento que eles suscitam. Buscamos, através do panorama exposto, chegar ao centro das questões que ligam o ícone ao contexto social e político. Refletir sobre isso é, talvez, transformar...

AGRADECIMENTOS:

À FAPESP, pela bolsa concedida em favor do projeto; ao Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento, pelo inestimável apoio na figura de co-orientador desta pesquisa; ao Prof. Dr. Sikiru Salami, sociólogo e pesquisador do culto aos Orixás no Brasil e na África; ao artista plástico Cláudio Pastro; a Cristina Berti e Joceli Domingas de Oliveira que muito me auxiliaram na execução deste trabalho.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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Contact: beth_firmino@yahoo.com.br


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